terça-feira, 7 de março de 2017

Vida Líquida + Fahrenheit 451


- A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?" (Ray Bradbury - Fahrenheit 451)

Em novembro passado, terminei o Vida Líquida, de um sociólogo polonês célebre chamado Zygmunt Bauman. Ele morreu no dia 9 de janeiro, aos 91 anos, perfeitamente lúcido e ainda lecionando.

Quando postei um trecho de Vida Líquida no facebook, chegaram a me pedir alguma sugestão de releitura que auxiliasse na compreensão desse autor - algum autor que tratasse sobre o sociólogo de maneira mais palatável. Por um momento, titubeei, já que eu havia lido o próprio Bauman - então me lembrei de uma pessoa que faz, sim, uma ÓTIMA releitura do Bauman, é sempre indicada aqui no blog e tem virado celebridade nas redes: o professor Leandro Karnal! Todas as palestras dele, especialmente Felicidades e Redes Sociais (2016), transmitem de forma atualizada e ultrapalatável as idéias de Bauman!

Já me disseram que Bauman não é muito fácil de se ler. Bom, para quem ainda não tentou, fica o meu depoimento: não achei difícil; a linguagem é bastante palatável; o conteúdo é que é denso. Explico logo mais.

O Vida Líquida integra uma série de livros sobre um mundo contemporâneo que Bauman denomina líquido - Modernidade Líquida, Medo Líquido, Amor Líquido... por que líquido? Porque, segundo o sociólogo, vivemos uma realidade que em muito se diferencia da vivenciada na primeira metade do século XX. Nossos avós e até pais viviam num mundo de valores sólidos e mais certezas do que dúvidas; o ofício que desempenhavam seria o mesmo pelo resto da vida; detinham uma noção clara e inquestionável sobre o certo e errado, moral e imoral; predominava um apego religioso que determinava a moral vigente e até mesmo as leis; as tradições e os costumes eram consistentes com a crença vigente e com o direcionamento que as pessoas davam à própria vida. Mesmo que a vida não fosse necessariamente mais fácil, linear ou prática, a noção que as pessoas tinham do sentido que produziam era rígida e até inquestionável. Era uma época de uma vida previsível e de valores relativamente estáveis; como o professor Karnal comenta, nossas avós têm certeza de que chá de limão cura gripe; hoje, não temos certeza de que alimento faz bem ou mal, de qual dieta é mais indicada para nós ou mesmo qual o melhor tratamento para alguma doença, já que, diariamente, surgem novos artigos refutando o método anterior e apontando um novo caminho.

O que é mais saudável - comer de três em três horas ou apenas quando der fome? Não seria melhor comer apenas três grandes refeições, como supostamente nossos antepassados sempre fizeram? Quando usar antibiótico? Podemos confiar em médicos que receitam muitos medicamentos? Podemos confiar em médicos que receitam poucos medicamentos? Qual é a quantidade ideal de exames médicos aos quais temos de nos submeter? 

Antes, tudo era mais sólido - não necessariamente mais verdadeiro ou correto, mas sólido. Nossos pais e avós sequer podiam se divorciar, já que a lei do divórcio entrou em vigor apenas a partir dos anos 70 no Brasil e, antes disso, havia só o desquite; assim, a concepção de amor e casamento não era ancorada à possibilidade de separação. Antigamente, não havia sacolas plásticas, potes descartáveis e produtos tecnológicos de obsolescência programada; se algo quebrava, era para ser consertado. Hoje, é mais fácil descartar o produto velho e comprar um novo do que repará-lo; costureiros, alfaiates, sapateiros e técnicos reparadores aparentemente estão em extinção. Em vez de encomendarmos aquela roupa sob medida na costureira e na bordadeira - como se fazia antigamente - temos nossos corpos reduzidos a manequins "P", "M" e "G" em grandes lojas impessoais de departamento.

[Já repararam que não basta uma roupa ter o "seu" número para vestir bem? O "caimento" também tem que ser adequado. Só que, no modelo de produção em série, que padroniza o tamanho e o modelo de roupa, não dá para contemplar as variações existentes entre corpos humanos, por isso dificilmente encontramos a roupa "correta" nas grandes lojas.]

Nunca houve tanta opção de consumo disponível nas prateleiras de lojas como vemos atualmente. Temos diante de nós um leque de possibilidades de consumo que excede o tempo de vida de que dispomos para aproveitá-lo.

E a economia? Antes, nossos pais e avós trabalhavam num mesmo setor - possivelmente na mesma empresa - por toda a vida. Hoje, pode-se ser demitido a qualquer momento, mesmo que se esteja às vésperas da aposentadoria! Manter-se no mercado é incerto e, de forma paralela, nasce a geração "barra", de jornalistas/escritores; engenheiros/desenhistas; músicos/arteterapeutas; programadores/publicitários; consultores de estilo/vlogueiros. 

Nesse mundo de instabilidade econômica e moral dominado por incertezas, as palavras de ordem são substituídas de maneira fluida, rápida e líquida.
Velocidade, e não duração, é o que importa. Com a velocidade certa, pode-se consumir toda a eternidade do presente contínuo da vida terrena. (Bauman, 2005, p. 15)
A moral relativizada e flexibilizada, o ápice tecnológico e a instabilidade econômica propiciam um cenário de revezamento constante de valores, como se, a cada dia, mês e ano, um valor diferente - oposto ao anterior, até - se tornasse a nova tendência, isto é, a nova verdade. Isso aparece na moda que se veste, na decoração, na alimentação, na saúde, no bem-estar, na busca por segurança, enfim: no modo de se viver e de se produzir sentido.

Bauman coroa essa explanação discorrendo de maneira articulada sobre o tema e lançando mão de uma série de referências; ele encadeia suas idéias com uma riqueza de exemplos retirados da televisão, das revistas e de outras mídias disponíveis na primeira década do século XXI, por isso não é de se estranhar que algumas pessoas tenham dificuldade para lê-lo; não é que seja difícil - é denso. São muitas idéias condensadas em poucas linhas, por isso, se a gente se distrai por um segundo, é preciso retomar parágrafos inteiros.

É como se a própria maneira de que Bauman se utiliza para articular a vida líquida no livro fosse tão acelerada e multifacetada quanto o conceito em si.

Enfim: uma sociedade que substitui a todo momento sua verdade é uma sociedade de consumidores. Aqui, Bauman é enfático na diferença entre consumo e consumismo; o consumo, em essência, é um ato individual e solitário que a humanidade executa desde sempre. O consumismo é o que há de novo em nossa sociedade "pós-moderna": é o consumo incessante e massivo inserido em uma cultura voltada única e exclusivamente para consumir. É tornar, portanto, cultural, imperativo e constante um ato até então solitário e intermitente.

Uma sociedade consumista produz muito lixo. Nesse ínterim, um ponto que me chocou é a constatação, exposta em números, de que, se todos os habitantes do planeta tivessem o privilégio que uma parcela do mundo dito desenvolvido tem de adquirir os bens oferecidos a rodo pelo consumismo capitalista, seriam necessárias três Terras para abastecer a população. Ou seja: a vida líquida, tal como ela é, embora ofereça incontáveis e ambiciosas promessas de satisfação, é inviável para toda a humanidade. Para funcionar, ela deve contar com uma camada de pessoas excluídas.

Da mesma forma que distingue consumo de consumismo, Bauman diferencia os conceitos "indivíduo" em sua raiz e no uso cotidiano. Antes, "indivíduo" seria a unidade indivisível de uma sociedade, isto é: tal qual o átomo seria a parcela indivisível da matéria - hoje divisível - o indivíduo equivale à unidade indivisível de uma sociedade. A noção de que indivíduo diz respeito à singularidade, isto é, individualidade, é posterior e evoluiu em um contexto permeado pela lógica liberal burguesa, humanista, dotada de uma relativização moral existencialista, em que cada pessoa, em um mundo moralmente incerto, passa a priorizar a si mesma.

Um contexto moral flexível e economicamente instável, individualista e de vertiginoso crescimento demográfico acentua o estranhamento e a insegurança.

Desde o início, as cidades têm sido lugares em que estranhos convivem em estreita proximidade, embora permanecendo estranhos. A companhia de estranhos é sempre assustadora (ainda que nem sempre temida), já que faz parte da natureza dos estranhos, diferentemente tanto dos amigos quanto dos inimigos, que suas intenções, maneiras de pensar e reações a condições comuns sejam desconhecidas ou não conhecidas o suficiente para que se possa calcular as probabilidades de sua conduta. Uma reunião de estranhos é um lócus de imprevisibilidade endêmica e incurável. (Bauman, 2005, p. 101)

O componente da insegurança e a promessa de proteção passam a ser uma conseqüência nessa vida líquida - assim podemos pensar em como as pessoas abarrotam suas casas com dispositivos que prometem protegê-las da ameaça externa e se permitem amedrontar pelos noticiários sangrentos que banalizam o mal até ele se tornar uma ameaça inexorável e incontestável - a menos que você adquira os produtos adequados para sua própria proteção.

Uma sociedade consumista, que prioriza um gozo individual nunca devidamente saciado - posto que esse anseio é uma promessa que se estende ao infinito, jamais se cumprindo - testemunha o esvaziamento do espaço público, por sua vez engolido pelas instâncias privadas. As pessoas desatam a preferir ficar em suas casas, ou nas casas de conhecidos, ou em espaço de consumismo privado, onde o estranho não pode penetrar a menos que também pague e se comprometa a compactuar com o gozo individual vigente. Quando Bauman expõe esse esvaziamento do público com a intumescência do privado e o estranhamento ante a alteridade, só consigo me lembrar de uma fase de desenvolvimento infantil segundo o construtivismo piagetiano: na primeira infância, as crianças são muito egocêntricas e, embora falem e interajam, não conseguem se comunicar realmente; assim, mesmo em grupo, elas estão, na realidade, apenas com elas mesmas, em um monólogo coletivo - elas ainda não sabem escutar o outro e se comunicar com ele, por isso, se observarmos os parquinhos da pré-escola, veremos como, mesmo brincando juntas, as crianças agem de maneira solitária.


"And in the naked light I saw;
E na luz nua eu enxerguei;

Ten thousand people, maybe more;
Dez mil pessoas, talvez mais;

People talking without speaking;
Pessoas conversando sem falar;

People hearing without listening...
Pessoas ouvindo sem escutar..."
(Simon & Garfunkel)

Quando penso em uma sociedade consumista, habitada por um desejo insaciável, penso em uma sociedade infantil, em que todos se reúnem em galerias de compras privadas, focadas em seu mundinho individual de consumo e sonhando com aquele produto que lhes trará plenitude. Mas esse produto nunca existe, e todos os que são consumidos em prol dessa promessa logo se tornam obsoletos e descartáveis...

Para essa tendência egocêntrica, uma saída é possível:

É a tendência a se retirar dos espaços públicos e recolher-se a ilhas de mesmice que com o tempo se transforma no maior obstáculo ao convívio com a diferença - fazendo com que as habilidades do diálogo e da negociação venham a definhar e a desaparecer. É a exposição à diferença que com o tempo se torna o principal fator de coabitação feliz, fazendo com que as raízes urbanas do medo venham a definhar e a desaparecer. (Bauman, 2005, p. 102)

Outra observação interessante de Bauman é a de que, numa sociedade de alta velocidade, consumo acelerado e descartabilidade, a solução para a alimentação seja... acelerar o metabolismo! Três refeições diárias deixa de ser o suficiente; é preciso comer o tempo todo, em quantidades regulares, em um ritmo por demais parecido com o ritmo de consumo de todo o resto.

Essas foram apenas algumas das análises que mais me marcaram - são mais de duzentas páginas com análises aceleradas e detalhadas, enriquecidas com exemplos, de aspectos que respaldam a teoria de uma vida líquida.

Acontece que esse livro é de 2005. Pois bem: como disse o professor Leandro Karnal em uma de suas palestras, se uma pessoa do ano 1100 dormisse e acordasse em 1300, pouca coisa teria mudado; se ela, porém, dormisse em 1980 e acordasse somente agora, ela não reconheceria o mundo e ficaria perdida; nos últimos 37 anos, muita coisa aconteceu.

Entre 2005 e 2017, muita coisa mudou. Inclusive, pessoas comentam isso no facebook e até fazem listas engraçadas tentando "provar" que 2005 aconteceu há mais de cem anos...

É só a gente pensar; quais celulares as pessoas usavam em 2005? Como eles eram usados? Quem os tinha? Como eram os computadores? Qual era a velocidade de internet e a memória ofertada pelos dispositivos? Como a informação era disseminada? Quais os meios de comunicação mais acessados? Quais filmes, séries e novelas estavam em voga? Quem era os grandes ídolos pop? Qual era o momento político? Quais eram os hábitos e os hobbies das pessoas? Por isso, vale a pena ver as palestras do professor Karnal, com exemplos desta segunda década do século XXI. As transformações que ocorreram apenas nos últimos doze anos corroboram a tese de que nosso modo de vida está acelerado e incerto, isto é, líquido.

Por que iniciei esta resenha com um trecho de Fahrenheit 451, um livro que li quatro anos atrás, lá pelos idos de 2013?

Porque foi impossível não me lembrar dele enquanto lia o Vida Líquida. A sociedade distópica concebida por Bradbury em 1954 - 50 anos antes de Bauman! - é uma sociedade que culturalmente se aproxima da líquida. Os bombeiros, nela, queimam livros, apagando toda a história e a filosofia; a sociedade de Bradbury é alienada das guerras externas, dominada pelo consumismo, pela solidão, pela adrenalina e pela agressividade. A esposa do protagonista, Mildred, passa o dia interagindo com uma televisão inventada para parecer que o espectador está realmente se comunicando com os apresentadores de auditório - quando, na realidade, os telespectadores estão sozinhos, conversando com programas previamente gravados.

As pessoas não se comunicam - encontram-se para assistirem a essas televisões ultratecnológicas ou passeiam em galerias para comentar, em conversas monossilábicas, como os produtos são "legais". Os carros passam em velocidade tão alta que cada outdoor possui sessenta metros de comprimento - para dar ao motorista em alta velocidade tempo de lê-los. As pessoas não interagem, imersas em seu mundo coletivamente solitário de prazer e satisfação; os jovens são delinqüentes, expondo-se a perigos constantes em busca de adrenalina, atacando uns aos outros ou envolvendo-se em esportes perigosos, como corrida de carro em alta velocidade pelas vias públicas, o que freqüentemente resulta em atropelamento de transeuntes.

Essa é uma sociedade consumista, impaciente, solitária e tecnicista, em que toda forma de diálogo é patologizada, ostracizada e queimada. Quando fala na queima de livros e na ausência de conteúdo filosófico nas escolas, Bradbury nos fala de uma sociedade na qual o diálogo e o compartilhamento inexiste. Afinal, para que servem a História e a Filosofia se não para nos colocar vertical e horizontalmente em contato com gerações inteiras de seres humanos para, juntos, dialogarmos e refletirmos sobre o sentido de nossa existência e nos conscientizarmos coletivamente de nossa presença, juntos, nesse planetinha que corre pelo espaço a 29km/s?

Assim, um mundo sem História, Filosofia, Geografia ou Línguas é um mundo onde não existe compartilhamento e uma produção de sentido baseada no coletivo; um mundo acelerado no trabalho e no prazer e voltada para o consumo é um mundo de pessoas solitárias, que se olham sem se ver, ouvem sem escutar e falam sem conversar - um mundo onde a solidão é compensada por satisfação momentânea, um circuito de prazer solitário e muita adrenalina para preencher esse vazio.

É deveras comum que, ao final de críticas à nossa sociedade, as pessoas perguntem: "tá, mas afinal: o progresso é bom ou ruim? Consumir é ruim? De que lado você está?" O ponto não é esse. Não devemos deixar de usar tecnologias ou resistir às mudanças - elas acontecem. O ponto é avançar com sabedoria, tomando o máximo possível de consciência das possibilidades que nos cercam. Assim, nesse mundo líquido, os riscos que assumimos são semelhantes aos denunciados por Bauman, Bradbury e muitos outros; talvez a idéia seja aprendermos a lidar com isso.

A idéia talvez seja questionar esse consumismo que nos é colocado como natural dia após dia; é questionar o medo que sentimos do outro; é produzir um sentido que nos devolva à coletividade; é pensar numa finalidade para nossos avanços tecnológicos. Que mundo podemos, com as condições atuais, construir? Que direcionamento daremos às nossas vidas? De que forma utilizaremos as facilidades que estão à nossa disposição? O que faremos com o lixo acumulado no planeta?

O livro do Bauman é uma denúncia à nossa vida cotidiana - basta prestarmos atenção para notar como ele explicita as armadilhas nas quais caímos sem pestanejar! É fácil tomarmos como naturais as leis da descartabilidade e o refúgio à vida privada (com Netflix e cobertor). Assim, essa teoria é um convite para compreendermos que, só porque temos mil e um produtos disponíveis ao vivo e on-line, não significa que consumir como consumimos seja natural ou mesmo correto. Essa concepção, por vezes naturalizada por nós, é, na realidade, socialmente construída e altamente lucrativa.

É difícil uma pessoa do mundo líquido viver fora desse âmbito burguês, capitalista, consumista, mas não devemos ser maniqueístas; penso que podemos aproveitar essa atenção redobrada que Bauman nos convida a ter em relação à nossa época para utilizar o que temos a nosso favor.

Em minha opinião, qual vantagem o contexto líquido nos oferece?

Vejam bem, falemos em divórcio. O divórcio é um processo muito sofrido, mais do que as pessoas imaginam; por mais que seja comum e não tão repreendido socialmente como já foi, é um processo de luto e superação. Quando você se separa de alguém, você dá adeus a todas as expectativas de vida que construiu junto daquela pessoa - os planejamentos, os sonhos e o tempo investido na relação. É um futuro que já não existe mais - isso dói. Além disso, a solidão repentina, oficial, também dói, mesmo que ambos estejam conscientes de que a separação seja o melhor caminho; dormir todos os dias numa cama que foi compartilhada por muito tempo, ficar em uma casa sem a pessoa e passar por todas as datas comemorativas por um ano inteiro sem a pessoa é difícil - é duro! A solidão e a carência surgem, e o mundo não vai parar para esperar que a pessoa supere essa situação. Existem saídas edificantes para lidar com essa situação - terapia, grupo de apoio -, mas existe um trabalho individual de superação a ser feito.

Contudo, a possibilidade do divórcio deve deixar de existir? Devemos voltar ao tempo em que casamento deveria, por lei e moral vigente, durar para sempre, apenas porque divorciar é difícil e doloroso?

É claro que não. O ponto é que, como Ben Parker bem diz, "grandes poderes exigem grandes responsabilidades". A liberdade de casar e divorciar trará um benefício, mas também exigirá uma grande responsabilidade. O benefício é o recomeço; a responsabilidade é arcar com a dor da perda daquele futuro que rui a partir da separação. É um tipo de dor que antes não existia, mas que agora existe. E, da mesma forma que ela existe, existe também a liberdade do recomeço; de utilizar a experiência do primeiro casamento para a vida, conhecer outra pessoa, casar-se novamente!

O risco que corremos, no mundo líquido, consiste em idealizarmos pessoas como bens de consumo e descartarmo-la, vivendo em um casulo infantil, solitário e narcisista e abrindo mão da possibilidade de amadurecer em um relacionamento que, por si só, exige entrega, cumplicidade e responsabilidade. Quando deixamos de compartilhar, deixamos de amadurecer. Assim, o benefício de recomeçar relacionamentos pode nos ajudar a amadurecer, a procurar relações mais saudáveis e condizentes com nosso momento pessoal, mas, em excesso, pode culminar em banalização das relações humanas e reclusão individualista.

Falemos em cirurgias e transplantes. Submeter-se a procedimentos desconhecidos, freqüentemente invasivos, que alterem a percepção que se tem do próprio corpo e dependam - no caso dos transplantes - da morte de uma pessoa saudável para que aconteça - é doloroso. É um tipo de dor que, em uma sociedade na qual esses procedimentos médicos não existem, as pessoas não experimentam. Mas, novamente, um grande poder traz uma grande responsabilidade. As novas possibilidades que se abrem para nós cobram seu preço por meio de novos dilemas, luto e necessidade de superação. Porém, também nos libertam e ampliam nosso leque de experiências.

O mesmo pode ser dito de um Estado cada vez mais laico. Uma moral fortemente religiosa ajuda a desenvolver um senso de grupo e alivia a dor existencial, fornecendo acolchoamento para a lógica humana ao nos dar um sentido, um início e uma finalidade, bem como suporte emocional e orientações aplicáveis ao nosso cotidiano. Quando recusamos o sentimento religioso que sempre esteve tão presente, deparamo-nos com um vazio, tanto no sentimento de grupo quanto no sentido da existência humana e de nossos valores - é uma crise. Tem luto, superação e reconstrução. Em compensação, existe um leque de possibilidades de construir novos sentidos e de nos responsabilizarmos por aquilo que criamos. Esses novos sentidos podem ser mais flexíveis que os dogmas religiosos e mais abertos à alteridade, ao contrário da enrijecida moral religiosa.

Quando penso nas possibilidades que esse mundo oferece, penso em erradicação de doenças; penso em construir um mundo onde o trabalho se torna cada vez mais edificante e menos opressivo para milhões de pessoas; penso em formas mais abrangentes de disseminar a educação e a palavra do professor, em formas de reciclar o lixo que produzimos, estar em contato com a humanidade, eliminar a fome mundial. Podemos sonhar, certo?

São muitas possibilidades. Acredito que, se soubermos nos conscientizar a respeito do consumismo narcisista ao qual somos convidados, poderemos acordar e enxergar o mundo em sua totalidade - poderemos nos desacelerar e perceber que o que temos à nossa disposição pode ser utilizado... em prol da humanidade.

4 comentários:

  1. Amei a sua reflexão. A verdade você tem você ten muita razão, citando o livro de Ray Bradbury. É um livro que nos faz refletir sobre o mundo atual. Eu li Fahrenheit 451 faz tempo mas acho que vou ler de novo. A maneira como o autor retrata situações é muito semelhante à realidade que estamos vivendo agora em nossa sociedade. Sendo sincera é um pouco assustador. Eu acho que é uma obra literária que todos deveriam ler para refletir e rever-se em a vida.

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