domingo, 30 de março de 2014

Os ensinamentos de Mulan


Mulan é um filme lançado pela Disney em 1998, mas só fui ver em 2004, quando foi lançada a continuação (que eu nunca vi). A heroína, apesar de não ser uma princesa na história, é considerada uma das princesas Disney.

Eu não vou me ater aos dados históricos do filme, e sim em por que a Mulan é a minha princesa Disney preferida. E vou tentar transmitir um pouco disso por aqui.


Concepção realista do artista finlandês Jirka Vinse Jonatan Väätäinen: maravilhosa! Ele também fez representações de outras princesas Disney.

Eu sei que é clichê falar da inteligência e da sabedoria da Mulan, já que todo o seu séquito de fãs enfatiza essa característica, bem estilo beleza x inteligência, por isso eu queria ir um pouco além. Não pretendo apenas falar do que existe de mais tangível e "superficial" nessa história, que é essa coisa de ser uma mulher guerreira e independente; eu queria falar sobre como a Mulan é deslocada e como isso é uma realidade densa, mesmo em um filme da Disney.

Mulan é de uma sociedade dotada de uma cultura determinista em que papéis de gênero e de classe são muito fortes. Se você for mulher, não pode falar na presença de homens; se você for homem, não pode recusar uma ordem do rei. E mesmo que puder recusar, haverá o peso da desonra recaindo sobre toda a família e as gerações passadas e futuras. E tudo é assim. Todos acreditam nisso e agem de acordo com essas regras.

Os pais da Mulan são assim, pertencem a essa cultura. Todo o mundo que ela conhece pertence a essa cultura.




Mesmo seus pais sendo mais flexíveis, tanto que têm uma filha tão diferente, ela sente o peso da responsabilidade e da honra recaindo sobre seus erros, então ser diferente não é uma permissão, mas uma falha pela qual ela se culpa e da qual se cobra - mesmo sentindo, no íntimo, que seus motivos, o motivo de sua "rebeldia" são legítimos. Ela sabe que são, segue o próprio coração, mas, quando olha para o mundo, vê que o que esperam dela não é o mesmo que ela espera de si.




De repente, toda a honra da família depende de uma atitude coerente com sua época. Mas como ser coerente a um modo de vida limitante?

Isso não seria um problema se ela não fosse tão deslocada. Se algo, bem lá no seu íntimo, não a tornasse alguém predominante e permanentemente deslocada, e esse era um atributo que dela não poderiam tirar.


Ser uma pessoa que não se encaixa é cair no abismo de decepcionar, mesmo aqueles a quem se ama. É ter que lidar com os próprios conflitos para ao menos manter a sanidade diante dos conflitos internos do outro. É perceber que mesmo que o outro ame você, ele vai esbarrar nos próprios preconceitos, e você terá de estar de bem com seu eu para não se deixar levar por essas contingências. Pelo conflito do outro.


Ela não era uma princesa. Não era uma rainha. Ela não tinha voz e nem meia voz.

Se ela falasse como no filme falou, todos ordenariam seu silêncio. E, mesmo que desobedecesse, de nada adiantaria. Palavras de nada adiantariam...

Eu adoro isso na Mulan. Ela não possui o atributo da beleza como pontos a seu favor, e nem autoridade para fazer valer a própria voz. Apenas o seu eu e seu poder de ação.

Quando falha como futura esposa na provação imposta pela casamenteira, só lhe resta a vergonha - que poderia ser atenuada pela flexibilidade e pelo amor dos pais, mas estes jamais retirariam seu sentimento de culpa. Como aliviar o peso da responsabilidade de manter a honra da família Fa?




Então seu conflito entra no contexto de uma guerra iminente e seu pai é convocado a lutar, mesmo estando velho e doente e, novamente, as obrigações para com uma sociedade estamental calam os sentimentos de uma rebelde. Como interceder? Quando fala, Mulan percebe o peso da responsabilidade cultural pairando entre ela e sua família. Ou assume essa responsabilidade permitindo que seu pai morra lutando e também busca um honrado casamento ou segue o próprio coração. E o que é o coração de uma garota indócil qualquer diante de toda a China?




Mulan nunca seria aprovada - ela sempre seria a criatura anormal. Ela nunca teria nada a seu favor; sua família era mais uma família respeitável e tradicional. Sua beleza talvez fosse apreciada por nós, mas não por seu povo, e sua inteligência era um apêndice fora do lugar. De que adiantaria a perspicácia em uma garota? Jamais seria aceita. Jamais seria entendida. Jamais teria algum valor. Como ter valor o que desagrada o valor vigente?

A decisão de Mulan não é a mais sábia e nem a mais segura; é um princípio, é uma ação que só possui o suporte próprio. Ela poderia gritar sua decisão aos quatro ventos e ninguém entenderia; em um mundo em que ninguém a entende, só poderia ela entender a si mesma. Se ela não confiasse na própria resolução, ninguém mais confiaria. Ela teria de ser ela mesma, ou pereceria.




Teria de confiar no próprio taco.

Mulan é a garota socialmente comum, mas psicologicamente rebelde, que vive em um mundo qualquer e o revoluciona. Ela conhece a realidade, ela sabe como é - e, mesmo assim, age, e faz por acreditar no que faz. Não importa se a realidade é cruel, antiquada e vazia - Mulan tirará de si mesma a centelha de esperança para fazer sua vida valer a pena.

E isso é poético. É lindo.

Não nos braços de alguém, porque existe uma cisão entre ela e o resto do mundo; não com um poder externo, que ela não possui; é algo dela e para ela. Para o que ela valoriza - para quem ela valoriza. É ela, movida puramente pelo seu coração.

O auxílio de um grilo pequenino, mas leal, de um minidragão obstinado e de um cavalo forte e companheiro de nada lhe adiantariam, se a ação dela não partisse.

Ela é uma deslocada. Sua aparência é incompreendida; seus atributos não lhe servem; seus defeitos se multiplicam.


Belíssima arte de "Shtut", encontrada no Deviantart.


Essa contingência dela, pelo que vejo, é única em todo o universo das princesas Disney. Ela é a única garota sem poder social que encara um mundo real para revolucioná-lo, e com a cara e a coragem. Nem mesmo Merida, mesmo sendo admirável, o faz dessa forma; apesar desse componente de "ser uma aberração que persegue o próprio sonho em uma realidade dura", Merida gozava de uma certa autoridade como princesa que Mulan nunca teve - afinal, era uma princesa, e seu conflito imediato era com sua mãe, a rainha. Já Mulan era a garota qualquer que, antes de confrontar de fato a família, confrontou sua realidade como um todo.

Talvez Merida seja revolucionária por ser a primeira princesa a finalizar sua história sem um príncipe encantado à vista, mas a premissa de uma garota qualquer que, por ter um coração desordeiro, por ser a aberração, muda a própria realidade me fascina muito mais. Mulan é a menina comum, e é o que mais me atrai.

Bela, minha outra heroína favorita, tem uma história tão bela quanto, mas ela não traz essa mudança social que Mulan traz. A mudança dela é mais introspectiva, o ver o belo no feio.

Quero dizer: a contingência da Mulan só pertence à Mulan. E é isso que me fascina nela.

Ela vai para o acampamento militar com o coração na mão, a astúcia na cabeça e um guardião da família pelo qual não esperava.

E então entra um segundo componente mágico nessa história: transformar-se em um homem.




Quero dizer, quando falamos em uma sociedade firmemente baseada em dois gêneros (ao menos no filme), sair de um gênero para integrar o outro é a assumir a própria aberração em prol do próprio coração. É pegar para si um outro componente de realidade. É vestir uma máscara. "Então eu preciso ser homem para substituir o meu pai e ter voz? Então é isso que farei". Sendo Mulan um alguém tão fora de mão, ela poderia ser homem ou mulher que, em sua realidade, isso não faria muita diferença, pois seria deslocada do mesmo jeito. Assim, nessa confusão, ela revela que poderia ser os dois, e com os dois manteria o seu segredo a salvo. Sendo mulher, ela seria também um homem por dentro e se sentiria atraída por assuntos de homens; sendo homem, ela manteria sua essência feminina com seus atributos físicos e culturais. Mas, para sua sociedade, ela nunca seria realmente os dois. Para ela, ela poderia ser bem os dois, e nenhum, porque realmente não importava.

Ela representa a dualidade de sua sociedade. Em uma sociedade dividida em dois gêneros, ela seria os dois, teria elementos dos dois. E, por ter os dois, não teria nenhum.

O terceiro componente é o treinamento. Ela nasceu sagaz, tornou-se homem, mas nunca fora uma guerreira. Ela precisava aprender a lutar. Não possuía uma habilidade manual (como Merida possuía, por exemplo). Não bastava desempenhar bem a função de homem, não bastava não ter sido descoberta em seu segredo; se não soubesse ser um bom soldado, todo aquele disfarce seria oco, não-funcional. E ela sabia disso e se cobraria mais.





Não era uma tarefa fácil.

Ela fracassa várias vezes. Mas une sagacidade, disciplina e perseverança, e então, além de homem, ela se torna um excelente soldado.

E aí estão os três componentes: 
- Ela é comum aos olhos alheios, sendo que a diferença em sua personalidade é, para todos os efeitos, nem louvável ou detestável, embora o filme coloque como detestável em alguns momentos e louvável em outros.
- Ela apresenta essa dualidade de gêneros de uma forma maravilhosa.
- Ela, mais do que ser, luta para se tornar algo. Quando ela assume uma decisão fora do padrão, não basta apenas ser a criatura fora da caixa; ela precisa fazer valer a escolha feita - no caso, ser um bom soldado.

É algo interessante: não é como se houvesse uma compensação definitiva para o desencaixe, não era algo líquido e certo. Não se encaixar em algo não pressupunha que tudo daria certo quando escolhesse uma alternativa mais digna de si - ela deveria lutar por isso, pelo seu espaço, e não havia como fugir dessa condição. E, por vezes, fracassaria.

Não era um escapismo; era continuar uma luta, só que em um caminho mais apropriado à sua condição rebelde.


"Talvez o que eu realmente queria era provar que eu poderia fazer as coisas do jeito certo".

Fracassaria. Mas não desistiria. Ela queria unir-se com sua sociedade, com as pessoas de quem gostava. Ela sabia que poderia ser quem era e, ao mesmo tempo, honrar sua família e contribuir como pessoa para sua sociedade. E foi o que provou.

Agora pense em uma temática tão profunda abordada com a magia de uma obra Disney. :)


Que vem a mostrar como podemos ter a ajuda e a amizade dos seres mais improváveis.


E, por fim, somos coroados com uma frase:




Quando eu vi o filme, eu havia interpretado que eu poderia ser essa flor. Que poderia desabrochar na adversidade.

Hoje, eu penso que não é bem assim. Uma flor que desabrocha na adversidade faria um contraponto a todas as outras flores que não o fazem, e não seria injusto não lhes conceder essa possibilidade? Não seria taxativo demais? Quem são as flores que desabrocham em condições favoráveis e quais são as que não o fazem?

Eu não queria levar para a vida uma lição subjetiva de superação tão parcial, que mais seria um conforto do que uma verdade.

O que eu penso é que todos temos flores em potencial, centenas delas, e que fazemos algumas desabrocharem com facilidade, enquanto que outras suportam condições adversas. Mas, sempre que encontrarmos uma adversidade que nos impeça de fazer florir nossos jardins, não devemos desanimar, porque o final será sempre compensador.

E que todos temos essas flores, porque somos complexos e multifacetados demais. E sempre apreciaremos essas flores rebeldes, perseverantes, que compõem nossa personalidade.



E toda Mulan que existe em nós conseguirá fazer valer sua discrepância, se fizer valer o que há de melhor em si.

Um comentário:

  1. Nossa, gostei muito do seu texto, a Mulan foi tão incrível e forte para lutar pelos seus ideais. Não basta ser rebelde, você tem que lutar pelo seu caminho.

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