quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Sobre mudar de faculdade #2


Parte II - A Mudança de Curso Bourne

Quando tranquei o curso de Farmácia, já havia assistido a um filme chamado "À Procura da Felicidade" (The Pursuit of Happyness), dirigido por Gabriele Muccino. É aquele em que, basicamente, o Will Smith fica andando para lá e para cá com o filhinho dele e passando um perrengue danado, sabem? Então.

Como boa parte da nossa sociedade regida por uma ética protestante - a despeito de uma tradição caótica católica -, internalizei em minha essência uma idéia fervorosa que uma interpretação desatenta desse filme poderia reforçar: a idéia de que todos temos igual capacidade e obrigação de "vencer" na vida mesmo diante das piores circunstâncias, de modo que nosso sucesso é de responsabilidade exclusivamente nossa, sem influência do meio no qual nos inserimos. Todos somos capazes e, quanto pior for a nossa situação momentânea, mais fortes e fodônicos devemos ser; se o "Will Smith", dormindo com o filho pequeno em metrôs e albergues, conseguiu ser bem-sucedido como contador, com certeza eu tinha a obrigação de apresentar uma conduta tão exemplar quanto a dele. Basicamente, segundo esse pensamento, se eu não conseguisse vencer meus obstáculos e tropeçasse em algum momento, a culpa seria total e imperdoavelmente minha - um famoso imperativo que divide pessoas entre "vencedores" e "fracassados"; parece até que essa idéia é coisa de estadunidense, mas ela se faz mais presente na cultura brasileira do que sonha a nossa vã filosofia.

A realidade é que não concordo com nada disso. Não acho que as coisas funcionem de forma maniqueísta; os motivos que regem as escolhas e as ações da humanidade admitem matizes, o que torna a idéia de sucesso ou fracasso distorcida e dura demais. Se a história desse cara, que não era o Will Smith, foi para o cinema, é porque, mais do que uma história de superação, é uma história de exceção, e não devemos ser tão rígidos em fazer da exceção a regra. Se a exceção for uma coisa positiva, podemos torná-la uma regra por meios igualmente positivos - não de forma sádica e perversa. Se quisermos mais pessoas convictas e capazes de dar a volta por cima, não devemos fazê-lo pelo imperativo da raiva, mas com compaixão, compreensão, lucidez, temperança. Mais equilíbrio, menos rigidez.

Basicamente:


"Nós gastamos mais tempo parabenizando as pessoas que tiveram sucesso do que encorajando as que não tiveram" - Neil deGrasse Tyson.

Só que, para algumas pessoas - like moi -, ter essa temperança consigo mesmo é mais difícil do que senti-la em relação ao outro, e era o meu caso. Eu sentia vergonha por ter trancado a faculdade me massacrava por dentro.

Quando me bateu toda essa crise existencial/profissional, esses valores severos ribombaram no meu ser com mais intensidade do que a fúria da Tia Guida sobre um incompreendido Harry Potter. No post anterior, comentei que estava passando por camadas e mais camadas de conflitos, e que não gostar do curso era apenas a cereja do bolo - embora fosse uma cereja de grandeza significativa e gosto azedo. Por isso, esse meu lado rígido não gostou muito quando comecei a me desiludir com Farmácia, já que esse foi um curso que eu mesma escolhi e numa universidade de minha preferência. A culpa era minha e, se não eu aproveitasse aquela chance, eu teria fracassado e talvez me arrependesse pelo resto da vida. Eu seria o oposto do velho sonho americano, o oposto do persistente carinha interpretado pelo Will Smith que dormiu em estações de metrô, mas que nunca desistiu. Essa escolha faria de mim uma pessoa fraca e incapaz de levar um projeto até o fim. Para resumir bem, esse sentimento meio que acabou comigo na época.

Óbvio que eu não estava assim por causa de "À Procura da Felicidade", porém o filme representava exatamente os valores que há muito eu ia absorvendo intensamente e que se solidificavam mais e mais como uma pedra na minha cabeça da qual eu não conseguia me livrar; talvez essa pedra acarretasse o mesmo grau psíquico de sofrimento que um cálculo renal poderia trazer ao corpo físico. Era uma espécie de cálculo cerebral, uma denominação irônica e ambígua, já que também sempre fui boa em fazer contas de cabeça.

Então,  no meu caso, a minha consciência meio que desempenhava excessivamente bem o papel que muitos pais desempenham na vida dos filhos; o meu medo não era de eles não me apoiarem na minha decisão, e sim de sentir que estava desperdiçando uma chance de me provar.

Eu sei que muita gente tem medo da reação dos pais quando quer desistir de um curso; alguns motivos possíveis para isso acontecer é o medo de decepcioná-los, medo de decepcionar a si mesmo, insegurança, medo de que a opinião deles corresponda à dura realidade, tornando o seu sonho profissional um absurdo sem precedentesAs coisas ficam ainda mais complicadas principalmente se o "fator de desilusão" for uma graduação do tipo tradicional ou concorrida: medicina, direito, engenharias, ciência da computação... cursos normalmente tradicionais ou de status. Se você possui o desejo de se tornar turismólogo, gastrônomo, oceanógrafo, astrofísico, ator ou marceneiro, é normal se sentir sufocado e sem saída: como falar para o pai que tanto investiu em você (econômica e emocionalmente) que, por um capricho do destino, sua idéia agora é Teatro no lugar da admirável Engenharia? Para eles, normalmente há um desvio de interpretação clássico quando tal sentença é proferida:

Sentença do filho: Pai, eu tô fazendo Cálculo II pela terceira vez... tô meio cansado já, a faculdade não é bem o que eu esperava, é o meu quarto estágio e não estou gostando muito da área, acho que me precipitei na hora de escolher o curso porque senti medo. Só que, estando na faculdade, conhecendo pessoas, fazendo estágio, arrumando contatos, percebi que, se insistir e lutar, posso fazer o que realmente quero. Entendi que tudo na vida é difícil, e que a diferença entre o sucesso e o fracasso é o empenho que a gente bota - e esse empenho vem quando fazemos o que queremos. Por isso, estou fazendo duas matérias em Teatro e descobri que quero isso, mesmo, tem até uma amiga minha que é monitora de um laboratório na faculdade de psicologia e que aplicou dois testes vocacionais em mim, e sabe qual foi o resultado? Tenho facilidade com expressão e interpretação artística, pai. E parece que tem uma oportunidade de trabalho muito boa em São Paulo...
O que o pai entende: Pai, andei pensando e resolvi que quero passar fome.

Sentença da filha: Mãe, quando eu estava no cursinho, eu ficava pensando na faculdade certa para mim, mas a verdade é que eu nunca sabia nada a respeito de curso nenhum porque não tinha noção de mercado - ficava lendo aqueles guias do estudante que não explicavam muita coisa. Agora, na faculdade, tive oportunidade para conhecer o mercado, fiz amigos em vários cursos e fui percebendo que Engenharia Ambiental não é bem o que eu achava que era e não está perto do que gosto de fazer. Tenho vontade de ser pesquisadora e docente, ficar na academia, engrenar um mestrado... mas o que mais tenho gostado de fazer é ler sobre Ciência Política. Quero transferir minha graduação para Ciências Sociais.
O que a mãe entende: Mãe, quero virar hippie.

Sentença da filha: Pai, eu não estou gostando das aulas de semiologia na medicina. Os dois primeiros anos foram legais, com o ciclo básico, com aulas de anatomia, embriologia, virologia... mas, agora que estamos indo para hospitais e conhecendo pacientes, está todo o mundo mais animado, menos eu. Não sei se consigo ficar até o final lidando com isso, estou pegando recuperação em patologia e pensando em mudar para Biologia, é o curso que sempre quis. Achei que medicina seria parecido, mas não está sendo e sinto falta das aulas de anatomia e de biologia molecular. Não quero ficar estudando pessoas e doenças, gosto é de biologia.
O que o pai entende: Demando internação compulsória antes que faça alguma besteira.

É o momento perfeito para os progenitores adotarem argumentos que façam você parecer infantil ou iludido, incapaz de se ater à realidade ou de pensar por conta própria. É claro que existem também o pai ou a mãe compreensivos que apoiam seus sonhos mais audaciosos e que entendem que os filhos crescem e precisam formular as próprias crenças, ter as próprias experiências; mas, se esse não for o caso, a minha recomendação, por ora, é: pais têm uma capacidade de te fazer se sentir melhor ou pior de um jeito que as outras pessoas não têm, por isso saiba que a opinião deles, quando taxativamente contrária aos seus sonhos, é apenas a opinião de alguém que compreensivelmente sente medo.

Mas não se pode viver com medo.

Além disso, mudança de mentalidade tarda, mas não falha. Se considerarmos que o mercado, conforme já discutido antes, não é a Terra dos Sonhos Purpurinados e que possibilidades profissionais não são disseminadas a rodo, é compreensível que muitos pais, preocupados com seus rebentos - ainda que profissionalmente bem-inseridos -, não tenham uma noção compatível com a realidade.

Até porque, se o mercado já não é lá uma maravilha, tenho pena de quem está condenado ao mercado de um ramo específico para o qual não possui vocação.


"Não se pode viver com medo" - Johnny Blaze/Ghost Rider

Antes de entrar na faculdade, cheguei a prestar vestibular para medicina. O motivo era simples: na época, não havia elaborado direito o que fazer da vida, estava cheia de dúvidas, confusa e perdida entre guias estudantis recheados de possibilidades de cursos e faculdades diversas. Sonhava com coisas exóticas como Oceanografia, Astronomia e Paleontologia, mas estava inscrita em Medicina. Como tinha na cabeça esse negócio de virar cientista, num primeiro momento havia acatado a sugestão da minha família - afinal, se eu não sabia direito para onde ir, perdida como estava, qualquer lugar serviria. E eu não queria de modo algum desagradar aqueles que tanto haviam zelado pela minha educação.

Só que, em vez de continuar nesse plano de virar médica e possivelmente não conhecer o desemprego - a despeito das condições de trabalho nem sempre favoráveis - senti uma angústia repentina, como se eu estivesse ignorando algo muito importante nesse percurso. Hoje entendo que essa angústia estava sinalizando uma necessidade quase palpável de me atentar ao meu próprio destino e de fazer eu mesma uma escolha, em vez de acatar conselhos alheios de forma irrefletida; por isso prestei também vestibular para Engenharia Química e, no final, acabei indo para Farmácia em vez de insistir na tão idealizada Medicina.

Acho que a sociedade meio que agradeceu por isso - ela não precisava de mais uma médica que não amasse a profissão. Mais um ponto para a sociedade.

Se eu não queria ser farmacêutica, isso eliminava toda uma área de atuação. Com certeza, a graduação compatível comigo não seria Biomedicina, medicina, fisioterapia, biologia, química. Uma dica possível de área possível surgiu quando percebi que aulas descritivas não me atraíam; sentia falta de provas discursivas e de longos textos conceituais e filosóficos. E a única disciplina em que havia me sentido minimamente soberana na Farmácia tendera para um lado de "humanas".

Foi aí que percebi que poderia pensar em Humanas, a única área do guia do estudante para o qual nunca prestara vestibular - sempre a recusara porque temia sentir falta de biológicas... é a sina de quem é Divergente.


Sempre teremos de tomar uma decisão. Mas nem sempre a decisão corresponderá às opções explícitas.

Comecei a imaginar bastante e tentar pensar num jeito de me decidir, de entender o que eu poderia fazer - porque eu não queria errar. Embora acreditasse filosoficamente que temos o direito a diversas chances, se colocarmos numa balança todas as minhas crenças, o meu lado "sábio" diria: o correto para você não é o correto absoluto, mas o correto que você é capaz de suportar. E eu, muito exigente e nascida em situações financeiras não muito favoráveis e uma educação rígida, embora quisesse ser uma pessoa plenamente livre, ainda não me sentia no direito à total liberdade. Errar uma vez seria o equilíbrio perfeito entre meu lado opressor e meu lado libertário. Seria a chance para me recuperar. Poderia mudar, mas teria só mais uma chance para isso.

Estava na hora de tentar algo em Humanas.

A dica que eu recebi de muitas formas na época foi: pense em uma coisa que você já faz e que a faculdade apenas vem para aprimorar.

Ok, é difícil levar isso em consideração porque o ensino básico no Brasil tem é altamente acadêmico, por isso não conheci muitos jovens que fizessem coisas tão vocacionalmente reveladoras - eu acho. Mas dá para pensar um pouco em nossos hobbies de adolescente como indícios de qual seriam nossas vocações.

O que eu já fazia desde sempre?

Desenhar, ler e escrever. O que eu desenhava: personagens de histórias fantásticas . Uma vez, aos oito anos, desenhei em quadrinhos toda a história de Jumanji - havia decorado as falas e até aquelas sentenças emitidas pelo jogo a cada rodada. Então passei a inventar meus personagens e minhas aventuras, até chegar ao ponto de montar três sagas e três enredos independentes. Uma das sagas continha onze tramas, mas nunca passei do segundo livro. Perdi no computador a única saga que quase terminei - fi-la com uns doze anos e consistia em quatro livros. O início do quinto livro coincidiu com a separação dos meus pais - mudanças aconteceram na época e eu acabei deixando toda a história de lado até perder todos os arquivos.

O que eu lia? Livros de ficção, livros de fantasia e mitologia grega. Aliás, sou imensamente grata aos dois livros de mitologia que havia em casa porque hoje minha percepção não seria a mesma sem esse conhecimento da dita cultura clássica. 

Na realidade, eu lia toda e qualquer coisa que caísse em minhas mãos, mas esses eram os preferidos.

Como isso poderia ser aprimorado e resultar em um trabalho?

Óbvio que não esperava que alguém quisesse comprar minha versão em quadrinhos de Jumanji.

A segunda dica foi de um amigo meu formado em Farmácia que, na época, fazia mestrado. Bom, quando você entra na faculdade, é comum ter a ilusão de que irá salvar o mundo das cáries e de que poderá entrar em um projeto de nome bombástico como "CRIAÇÃO DE VACINA CONTRA O CÂNCER", mas não é bem assim. Cada uma das palavras desta sentença, do ponto de vista metodológico, se desdobra em mil e duzentas minipesquisas subjacentes, consistindo nos tijolos que edificam a ciência. Assim, é mais fácil encontrar projetos como "reações de uma proteína Y a determinado íon inseridos em uma cadeia metabólica que se apresenta em hiperatividade durante o desenvolvimento de tumores do tipo C em baço de camundongo".

Ciência só é ciência se a metodologia for... metódica. Por isso, esse meu amigo astutamente comentou que mais importante até do que o contexto no qual o projeto estaria inserido era o processo em si - o "como" em detrimento de "o quê". O que tornaria o trabalho prazeroso, no final, não seria saber se o seu projeto revolucionaria a cura para o Alzheimer, para o câncer ou para melhorias na rede de esgoto e no resgate de energias alternativas. Se pensarmos com carinho, milhares de coisas e áreas de atuação que o ser humano inventa são nobres e bonitas, mas nem tudo isso nos atrai. Tudo é importante, mas você só conseguirá levar até o final aquilo que tiver um cotidiano atraente. Assim, os meios que o projeto exige para ser concluído importa mais. Quais teorias serão utilizadas na discussão? Quais os experimentos a serem realizados no dia-a-dia e com que freqüência? Qual bibliografia será lida à exaustão?

Sobre o que você pensará no dia-a-dia e com o que terá de lidar?

Levei esse conselho para a vida. Que tipo de cotidiano, baseando-me nas atividades exercidas ao longo da infância e adolescência, eu realmente gostava de fazer e o que eu poderia transformar em trabalho?

Eu sentia prazer em estudar História, Literatura e Filosofia - eram minhas aulas preferidas, mais até do que Química Orgânica e Genética. Eram as disciplinas que eu estudava com mais naturalidade. Eu gostava de explicar coisas para as pessoas, de passar algum conteúdo adiante. Ainda não havia matado a charada, mas sabia que escrita e leitura filosófica estariam envolvidas. Alguma coisa na área de criação de conteúdo e na disseminação de alguma mensagem.

E adorava desenhar seres humanos e cenas épicas.

Acho que isso poderia me levar tanto para Humanas quanto para Artes. O motivo de eu ter eliminado Artes foi falta de confiança, mesmo. Eu sei que precisamos ter confiança em tudo o que fazemos, mas a questão não é bem essa... 

Para começar, adoro Artes - são o Sazon da vida e dedico metade das categorias do blog a algo relacionado a artes. Mas o motivo de não ter escolhido Cinema ou Desenho é que ir para algo tão alternativo demandava uma convicção vocacional de que eu simplesmente não dispunha, por isso não estava tão pronta para arriscar. Escolher algo para fazer no campo profissional é pensar "o mundo precisa disso que tenho a oferecer" ou "o mundo precisa de mim em tal função". Isso é totalmente diferente de pensar, por exemplo, que o mundo precisa de mais médicos ou enfermeiros. O mundo precisa de tudo, inclusive de artistas - o Sazon da vida, lembram? O mundo precisa de você inserido nele.

O artista, na minha opinião, é o cara que:
- Tem uma base financeira estável para se dedicar a isso;
ou
- Tem muita convicção na própria arte para viver disso;
ou
- É tão deprimido e quase suicida que nada lhe resta a não ser isso.

O artista, basicamente, é o cara que diz "o mundo precisa da minha arte" da mesma forma que um engenheiro civil diz "o mundo precisa das estruturas que projeto" ou o enfermeiro "o mundo precisa do socorro que eu dou".

Ou "minha arte é o tempero da vida dessas pessoas".

Bom, eu não tinha a convicção de que minhas histórias ou meu estilo de desenho fossem tão necessários assim a outra pessoa. Tenho um amigo músico com uma voz maravilhosa e que preenche o mundo assim, e acho que ele sabe disso. Acho que o mundo precisa da voz dele.

Acho que o mundo precisa dos jogos que o namorado desenvolve.

Dos livros da J.K. Rowling.

Das ilustrações de Geraldine Sy.

De Zen Pencils.


De gente que faça boa arte.

Eu não estava confiante o suficiente para crer que o mundo precisava de minha arte. Eu não seria a pessoa que diria "quero vender minha arte na praia".

Mas fazia perfeito sentido, para mim, dizer "o mundo precisa da minha maneira de transmitir informação" ou "o mundo precisa do meu acolhimento e da minha escuta" ou "o mundo precisa da minha facilidade em racionalizar sobre justiça e direito".

Acho que essa seria uma terceira dica do que pensar ao escolher uma profissão; pensar "que coisa BACANA eu faço de que o mundo pode precisar?" ou "que coisa sensacional essa que tenho a oferecer que já me satisfaz e que quero dividir com o mundo?"

E hoje, pensaria em Artes? Hoje me sinto mais forte. Uma coisa interessante para divergentes é que, quando eles se sentem seguros em um ofício, consideram outros com carinho. E assim estou: quanto mais propensa à psicologia, à terapia e à docência estou, mais propensa também a me dedicar a histórias e a desenhos. Mas isso hoje; não naquela época.

Eliminando Artes, sobraram "só" os cursos de Humanas. Não vou discorrer sobre todos os cursos que descartei porque a única coisa boa no meio dessa indecisão é eu ter uma noção, ainda que torta e vaga, do que não queria - e acho que isso é meio que universal. Pelo menos nunca ouvi falar em alguém tããããão divergente que cogitasse absolutamente TODOS os cursos do Guia do Estudante. Sempre há alguma coisa que a gente elimina de cara.


Até pensei em Design e Arquitetura, mas eliminei porque: até hoje apanho do photoshop, eliminando Design; sempre gostei de desenhar pessoas, não lugares, daí eliminei Arquitetura. São áreas de criação, mas o que eu gostava de fazer não tinha muito a ver com isso. Outro curso muito relacionado a criação de conteúdo era Publicidade e Propaganda, mas descartei porque, na minha cabeça, o publicitário era a pessoa que inventava um jeito de divulgar produtos - coisas ou serviços. E, na época, eu não consumia muita coisa, nunca tive muitos bens materiais, nunca fui um bom alvo para propaganda - então nunca entendi como conseguiria ter propriedade em inventar formas de vender uma coisa que nem eu consumia. Como convencer uma pessoa de que ela precisaria de algo de que eu mesma nunca precisei?

Assim, resumi meu leque de opções a Direito, Comunicação Social e Psicologia. 

Do meu ponto de vista, o Direito tem como objeto de estudo a Lei e tudo o que a envolve: sua base filosófica, a organização normativa de uma sociedade e conseqüências que isso traz. Então, quem se forma em Direito tem o olhar da Lei.

A Comunicação Social(que inclui Jornalismo) possui como enfoque as diversas e dinâmicas formas de transmissão de informação para outras pessoas. O objeto de estudo aqui é a transmissão de informação entre humanos. 

A Psicologia (mas o que é a psicologia? Entendedores entenderão) possui como objeto de estudo o que denominamos sujeito - na realidade, seu objeto de estudo é o próprio observador. Então, a (pre)ocupação dela não consiste nas coisas do mundo, mas em quem faz essas coisas.

Esses três objetos de estudo - a Lei, a comunicação e o sujeito - me interessavam; agora eu só precisaria me concentrar em qual teria maior possibilidade de oferecer um cotidiano prazeroso. O que é difícil de fazer sem um acompanhamento vocacional ou sem conhecer realmente cada área com ajuda profissional. Mas eu sei que muita gente, como eu, não tem muita ciência das coisas nessa idade e nessa época.

Após essas três dicas, dois motivos me fizeram optar por Psicologia. A princípio, eu não sabia de forma alguma qual das três opções de curso seria a decisão certeira, se é que havia alguma a essa altura. Nessa época, conheci o namorado e então tive a oportunidade de conversar com minha sogra e duas cunhadas a respeito dessas opções; cada uma delas sabia alguma coisa a respeito de cada curso. E a sogra era formada em psicologia e atuava na área havia muitos anos.

O primeiro motivo que me levou a prestar vestibular para a psicologia foi mais uma certeza pelo "não" do que pelo "sim". Eu não queria errar de forma alguma, e achei que, ao escolher uma área cujo objeto de estudo era o sujeito, teria uma chance menor de errar. Estava meio cansada de me sentir indecisa, por isso acreditava que a raiz da questão fosse a essência humana - e que, ao estudá-la, poderia ter por onde começar. Poderia ter, sei lá, um pouco de sossego. E, como o mito de Cupido & Psique era meu preferido, a própria palavra "psicologia" me seduzia de alguma forma.

O segundo motivo foi o fato de ter justamente conhecido a sogra, que é psicóloga atuante. Um profissional de sucesso com anos de experiência que se prontifica a responder suas dúvidas de forma otimista possui grande influência sobre suas decisões - especialmente se o conhecimento de mercado do estudante indeciso for limitado. A experiência positiva dela em psicologia me despertou um olhar otimista em relação ao curso e à carreira, acendendo em minha mente uma esperança difícil de eliminar.

Além disso, a confiança de que eu poderia me dar bem em psicologia veio de um jeito meu de ver o mundo: meu interesse (e obsessão) pelo que hoje chamo de sujeitos. Como assim? Quando eu via as pessoas trabalhando, fazendo coisas importantes, pagando contas, indo ao cinema, exercendo as mais diversas atividades, eu tinha mais interesse na pessoa do que na atividade que ela desempenhava. Eu queria entender o que eram essas atividades do ponto de vista da pessoa, por que eram importantes para essa pessoa e como ela mexia com aquilo - quais os motivos dela, como ela raciocinava e qual a visão que ela tinha de si mesma. O que ela era além dessa imagem estática que eu construía em minha mente. Eu gostava mais de pensar em como as pessoas eram individualmente, com seus medos, seus afetos, do que no que faziam propriamente. 

Eu gostava de prestar atenção no meu pai quando ele levava trabalho para casa, por exemplo. Não tinha muita curiosidade a respeito do que fazia - alguma até tinha, e às vezes lhe perguntava. Mas passava a maior parte do tempo olhando para ele, me atentando a seus movimentos e em como parecia absorto. Gostava de ver meus pais cozinhando enquanto conversavam entre si. Gostava de observar a naturalidade com que as "pessoas grandes" realizavam atividades rotineiras e achava tudo fascinante.

E, quando cresci, passei a apreciar pessoas fazendo diversas coisas. Quando algumas amigas me chamavam muito confidencialmente para contar tudo a respeito da vida delas, bom, eu nunca me considerei aquela "amiga conselheira"; mas eu tinha um interesse inegável pela vida delas. Eu me sentia absorta e absorvida, preenchida de alguma forma pela maneira com que elas enxergavam o mundo e a própria realidade; de repente, eu via o mundo do ponto de vista delas e achava tudo bonito. E ria e escutava, mas a sensação de ser preenchida com a verdade delas era uma coisa que me era natural.

Ouvir estranhos conversando na rua. Observar pessoas. Eu nunca fiz isso com teorias prontas sobre pessoas ou tentando dar uma de detetive e desvendar seus reais motivos - gostava apenas de observar com interesse. Gostava de tentar entender o ponto de vista delas, o que elas pensavam sobre aquilo que faziam, como elas se sentiam na vida e no mundo e em que gostavam de pensar. Como seriam suas questões existenciais? Será que dedicariam muito tempo a elas ou achariam isso perda de tempo e que o mais importante seria pensar nas contas a serem pagas todo mês?

Nunca me identifiquei com pessoas que diziam gostar de dar conselhos ou com aqueles que se diziam investigadores e gostavam de deduzir o mundo das pessoas. Como disse antes, não tinha teorias prontas, apenas uma curiosidade quase obsessiva e uma estranha facilidade em me deixar preencher pela maneira como as pessoas davam sentido à própria existência.

Eu tinha esse fascínio por observar pessoas.

Então meu objeto de estudo tinha que ser o observador.


A função primordial do psicólogo, a meu ver, é a função da escuta e do acolhimento. E isso não é só sendo o estereotipado terapeuta de consultório - essa regra vale para tudo. A escuta vale para cientista da linha cognitivista que aplica testes em crianças; vale para o profissional de RH que carrega pilhas de currículo e realiza entrevistas de emprego; vale para o psicólogo do trabalho que está em pé, em terreiro de construção civil, conversando com pedreiros sobre como funciona o trabalho deles. Tudo o que o psicólogo faz, em tese, deve incluir a escuta guardadas suas respectivas proporções. Não é a escuta do psicanalista no consultório individual; cada escuta tem seu momento e sua função, mas o principal é oferecer isso. É oferecer essa autonomia ao sujeito que fala - se for a respeito dele mesmo, ou daquilo que faz, ou daquilo que enfrenta, do contexto em que está, enfim, o discurso a ser escutado varia de acordo com a área do profissional.

No final, reconheci em mim essa capacidade de escutar - ainda rudimentar - e de pensar na condição humana. Era algo que eu já fazia e poderia aprimorar; e, uma vez aprimorado, poderia oferecer isso na sociedade e no mundo profissional. Mesmo sem uma noção clara de qual seria o meu trabalho, tinha uma visão geral da graduação: teorias sobre a condição humana, leituras sobre isso, provas dissertativas e maneiras de exercitar a escuta, o acolhimento e a reflexão.

E isso me agradava o suficiente para entender que, desta vez, conseguiria ir até o final da graduação e até mesmo querer trabalhar na área. Era uma possibilidade.

E as histórias que escrevia? As tramas que bolava? Os desenhos épicos que fazia? Na época, me pareceu utópico o pensamento de que as idéias psicológicas pudessem invadir a composição de minhas histórias e de meus personagens - hoje, essa concepção se aproxima da realidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário