segunda-feira, 28 de julho de 2014

Os Novos Contos de Fada

Em 1959, os estúdios Disney lançaram “A Bela Adormecida” (Sleeping Beauty), uma versão contemporânea do conteúdo original de Charles Perrault, pai da literatura infantil, nascido no século XVII. Essa conhecida animação tem seu enredo resumido da seguinte forma na wikipédia:
“Em um reino distante, ao completar 16 anos, a princesa Aurora sofre uma terrível maldição da malvada bruxa Malévola ao espetar o dedo no fuso de uma roca. Ela cai em um sono profundo de 100 anos.
Mas as três fadas-madrinhas (Flora, Fauna e Primavera) descobrem uma forma de quebrar o feitiço: um beijo doce e verdadeiro de amor. Com Aurora adormecida, as fadas resolvem adormecer todo o reino. O príncipe Filipe, que é apaixonado por Aurora, munido de um escudo da virtude e da espada da verdade, combate e derrota Malévola e finalmente quebra o feitiço da princesa Aurora com um beijo de amor verdadeiro.”
Esses elementos predominaram nos contos de fada durante muito tempo, prevalecendo no nosso cotidiano. A luta entre o  bem e o mal consiste em um maniqueísmo clássico de nossa cultura, exposta em contos de fada e em outros tipos de histórias narrados em filmes, peças teatrais, livros, programas de rádio, novelas televisivas – em qualquer mídia de entretenimento, enfim. A figura da pureza, no caso, reside na bela princesa Aurora, injustamente amaldiçoada, que partilha de um fardo sem culpa alguma; ela é ajudada constantemente de forma eficaz por três bondosas fadas-madrinhas. Malévola é a bruxa má, corrompida, que quer, sabe-se lá a que preço, a destruição da princesa, mas o amor verdadeiro será responsável por colocar os planos da fada malvada a perder, e esse amor verdadeiro é simbolizado pelo príncipe encantado – que derrota o mal com sua espada justiceira. De acordo com esse conceito, existe o bem, existe o mal tentando se sobrepor ao bem e existe o amor verdadeiro simbolizado na figura de um jovem casal, que vence o mal.

Amada ou criticada, a Disney, para mim, parece regida pelos princípios culturais da sociedade vigente. Longe de se conservar ou de inovar, ela parece seguir o movimento, a corrente, o contingente cultural. Por isso, não é de se estranhar que, 55 anos após o lançamento da animação maniqueísta “A Bela Adormecida”, ela tenha lançado um longa que possa se contrapor a essa história, relatando o ponto de vista de Malévola, a fada má. O nome desse longa lançado em 2014 é “Malévola” (Maleficent).

Malévola criança, antes de ser uma bruxa má.
Nessa versão, todos os valores são mudados; não existe mais o bem ou o  mal de forma isolada; todos os seres são ambivalentes e em constante mudança. O mal é representado pela dor, pelo sofrimento e pelo desejo insano e repentino de vingança que pode sempre mudar; o bem nem sempre é acompanhado por sensatez, pureza ou eficácia; e o amor verdadeiro não é simbolizado por um jovem casal. Malévola é mais do que uma fada corrompida; ela muda todo o tempo e carrega dentro de si tanto o ódio oriundo da dor quanto o mais lúcido e desinteressado amor. Ela representa a ambivalência de toda a humanidade.
Essa discrepância de um mesmo conto nas mãos de um mesmo estúdio em épocas distintas reflete uma mudança de valores mais palpável a cada geração. Ou seja: se filmes que rompem com esse maniqueísmo estão cada mais em voga, caindo nas graças do público, então é porque o público tem mudado. Os valores têm mudado. As pessoas não se contentam mais com uma história em que existe o bem e o mal separados, porque isso não corresponde à realidade – ninguém é, de fato, bom ou mau. E o mal é o bem mal-interpretado – é o sofrimento. É o fardo que se assume quando se sofre e do qual é possível sempre se desfazer.

A dicotomia do bem contra o mal não é uma exclusividade cristã: o zoroastrismo persa, presente na atualidade em alguns povos, falou dele bem antes da existência do cristianismo; o bem era representado pelo deus Ormuz, e o mal, pelo deus Arimã. Muitas correntes filosóficas ou religiosas abordam essa dualidade; alguns a externalizam falando de Deus e do Diabo. Outros a inserem dentro de cada um de nós, sem uma fonte do mal absoluto.
Em vez de o bem vencer o mal, essas duas substâncias mesclam-se e digladiam-se dentro de uma mesma pessoa. Malévola é a fada que sofreu por amor e se corrompeu, mas, com o tempo, recupera-se do amor perdido depositando energias afetivas em outra pessoa, em outro objeto de amor, e é assim que reconquista sua força e o que há de melhor em si mesma. As três fadas-madrinhas, que antes representavam um bem incorruptível e um altruísmo incondicional, ainda querem ser altruístas, mas essa qualidade é carregada de leviandade e ineficácia; elas de fato se encarregam de cuidar da desventurada Aurora, mas são fúteis, atrapalhadas e imaturas demais, deixando de dar à menina a atenção necessária, enquanto Malévola, mesmo imersa no próprio ódio e no desejo vingativo, torna-se a verdadeira fada-madrinha da menina que ela mesma amaldiçoara. Uma nova fada-madrinha, não tão gentil, virtuosa ou maternal, mas amorosa e real.
Essa receita vem se repetindo inclusive em Frozen (2013), um outro grande sucesso da atualidade baseado em um conto de Hans Christian Andersen; no longa, o bem e o mal se inserem em uma mesma pessoa – no caso, tanto em Elsa quanto no ambicioso príncipe Hans. Nessa história, todos os personagens principais acertam e erram.
A idéia de que ou somos inteiramente preenchidos pelo bem ou inteiramente pelo mal, bem como a idéia do mal como uma ameaça externa e injusta parecia satisfazer a mentalidade de uma sociedade ainda recente; se somos de todo bem ou mal, há espaço para um sentimento de injustiça e de impotência; há espaço para não compreender o outro. Se formos inteiramente bons e o outro for inteiramente mal, ou seremos injustiçados ou nos sentiremos no direito de usar “uma espada da verdade” para derrotá-lo, pois temos um direito natural de prevalecer, representando o bem. A substância de que o outro é feita passa a ser digna de ser incompreendida e oprimida. A espada simboliza o poder, então, se somos bem, automaticamente temos o direito de impor o nosso poder sobre tudo o que nos parecer mau. Se há o bem puro, há o mal puro, mas ninguém quer se colocar sob a pele desse mal. Existe o mal, mas ninguém se candidata a sê-lo. Ninguém, no mundo real, quer ser a Malévola da animação de 1959, apenas a princesa injustiçada, ou o príncipe com sua alabarda.
É essa visão, ainda parcial e egocêntrica, que vem se desconstruindo em nossa sociedade.
É fato que todo e qualquer ser humano demanda compreensão. Todos queremos um holofote de compreensão para nossos motivos, por melhores ou piores que sejam. E não há nada, em nossa complexidade, que nos dê mais ou menos direitos em relação ao outro – somos complexos demais. Somos todos dignos de amor, perdão e compreensão. E, no fundo, é o que todos queremos. Então, para que exatamente serviria uma espada da justiça e da verdade se todos somos igualmente imperfeitos?
A figura da fada-madrinha, normalmente representada por uma entidade idosa, maternal e com poderes fabulosos, capaz de proteger o protagonista de todo o mal, torna-se falha com a existência das três fadas atrapalhadas do filme “Malévola”. Antes, evocava uma figura de bem perfeito e de absoluta proteção – agora, evoca uma figura precária dotada de virtudes e problemas. Ela não pode mais apenas proteger de forma mágica seus afilhados, pois está imersa em si mesma e nas próprias limitações. E o afilhado deve superar essas limitações e sobreviver apesar disso.

Uma fada-madrinha padrão – a da animação “Cinderela”.
A figura do príncipe encantado também muda. Se o bem e o mal habitam cada um de nós, como pode o príncipe ser mais capacitado para nos salvar do que nós mesmos somos de fazê-lo? Nós temos o bem de que precisamos, e ele, o mal que ele mesmo precisa superar a respeito de si. Deixamos de depositar no outro a resolução para nossos problemas e evoluímos juntos.

O príncipe em seu cavalo branco.
A figura da bruxa malvada não é mais tão fatalista, determinista e opressora quando podemos compreendê-la. Ela é mutável. Ela busca o seu lugar no mundo. Assim como todos nós.

A bruxa má da Branca de Neve.
Ninguém é tão puro, perfeito ou frágil como uma princesa. Não seria triste se nosso destino dependesse exclusivamente das vontades de outro, tanto para as coisas boas quanto para as ruins?

Branca de Neve, uma das primeiras princesas Disney e a mais tradicional.
E o destino vira também aprendizado. A maldição é uma missão a ser superada, quando temos em nós o poder de compreender o próximo.
Essas figuras maternais e paternais que preenchem os contos de fada por meio dos protetores, salvadores e opressores passam a habitar não mais figuras externas, mas todas as personalidades existentes em nosso espírito, e passa a caber a nós mesmos encontrar a chave para mudar a nossa constituição e compreender nossa história e a história do mundo.
Estamos vivenciando um novo paradigma. De repente, mesmo os contos de fada – embelezados ao final da Idade Moderna com suas personalidades idealizadas boas ou más – parecem satisfazer cada vez menos uma população mais disposta a encontrar em si as conseqüências do amor e do sofrimento. Compreender que não há uma essência maléfica pura ou eterna é compreender o dinamismo e a complexidade da personalidade humana e assim amadurecer; é aceitar recomeços e falhas em si e nos outros, e saber a importância do perdão. É entender que não há bem ou mal, e sim matizes que mais demandam compreensão e respeito do que julgamento. É equilibrar o sentimento e a racionalidade e assim construir uma sociedade justa, receptiva e amorosa.

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